Sometimes is never quite enough..

[,,] A saudade ensina ao coração o que sentiu e apreendeu quando estava a amar sem vontade ou sem prestar atenção. Ensina-lhe o que na verdade meteu dentro de si e jamais compreenderá - e que um dia deixará fugir.
A saudade é o castigo das almas puras, mas distraídas. [,,]

segunda-feira, 14 de maio de 2012
























O céu ganhou uma estrela

 [25 Março 2012]

[,,]Hoje o céu ganhou uma estrela
Hoje perdi a minha avó.
A última avó.
Oitenta e três anos de vida.
De doçura.
Em vez de me prender à perda, tentei, em vão, celebrar a vida que teve.
Uma celebração do que melhor podemos retirar desta vida.
Do amor. Da partilha. De um abraço incondicional e com cheiro a eternidade.
Tentei celebrar e agarrar-me aos momentos únicos e deliciosos que vivemos juntos em familia.
Agarrar-me ao carinho e ao amor que estiveram sempre presentes. Aqueles que são genuinos. Momentos no seu estado mais puro de amor.
Sabem o que isso é?
Porque os avós mimam-nos como ninguém.
É um amor de avós.
Não se explica.
Nâo se define.
É aquele amor e pronto.

Tenho presente a todo o instante o sorriso no teu olhar quando me vias. E quando já adivinhavas que ia dizer uma das minhas piadas. Esse riso tantas vezes tímido que esboçavas quando eu fazia uma brincadeira. E o teu olhar sorria e derretia-se.
De te abraçar e de ficares com a tua cabeça no meu peito e de eu fazer que te procurava porque não te via por seres "pikena" - dito com sotaque alentejano. Abanavas a cabeça como que dizendo "não tens juízo nenhum". Mas não largavas o abraço.
O orgulho com que me apresentavas às pessoas e como falavas de mim.
O teu rosto espreitando na janela enquanto estacionava o carro para mais um fim de semana.
De ligares quando vias na TV que tinha havido um temporal na cidade, e querias saber se estava bem.
Ou vias o trânsito na ponte para Lisboa e dizias "ali há-de ir o meu netinho" -sim porque os avós dizem estas coisas. Tal como acham sempre que comemos pouco.
De saberes aquelas coisas que só os avós sabem e que não vem nos livros.
De nos sentarmos à volta da lareira no inverno e ficarmos na conversa entre um chá quente e um biscoito, ou de um doce de Natal.

Todas as pessoas deveriam ter o carinho e o amor de uma avó como eu tive.
Sou um privilegiado pelos momentos que me fizeram crescer e que contribuiram, de uma forma definitiva, para o homem que hoje sou.
Recordo-me que desde sempre senti-me um priviliegiado por ter conhecido todos os meus avós. De poder partilhar com eles a minha vida, o meu tempo, de beber da sabedoria deles. Porque sim, é verdade, os avós têm sabedoria. Têm a experiência da vida vincada no rosto, na pele e na alma.
E em momento algum, pensei sequer que existe um "lado perverso" nesta felicidade. Perdê-los. Um a um.
Hoje o ciclo encerrou-se.
Mais uma estrela que ganhou vida.

Conheço de cor os cheiros da casa.
Os sons.
A aspereza da tua mão, envelhecida pelos anos que passaram e pela vida que viveste nesse alentejo profundo, mas tão puro.
Conheço o teu olhar inocente e doce.
A cor do lenço que usavas na cabeça.
Dos manjericos que semeavas cuidadosamente nos vasos para oferecer aos vizinhos.
A cor branca do teu cabelo.
O cheiro da comida no forno, que nos esperava para mais um fim de semana.
Do arroz doce que só a avó sabia fazer.
De em criança ir sentar-me no poial ao sol, à porta de casa, em pleno verão de 45º e dizer-te que ia lá para fora para estar à fresquinha.
De irmos os dois buscar os ovos ao galinheiro e à horta e comermos a fruta das arvores, de apanharmos uvas e figos.
Da tua paixão por flores.
Do mealheiro que te trouxe de uma excursão a Coimbra e que me custou 100escudos "poupados milimetricamente" para que o pudesse trazer para oferecer.
Das noites de Natal,  de ir deitar e encontrar debaixo da almofada o teu presente de Natal, e no dia seguinte perguntares com carinho "o que é que o menino Jesus te deixou no sapatinho" - que era como chamavas o presente que me deixavas.

Não sei se esta viagem que decidiste fazer é para longe, se é distante, mas sinto-te como sempre senti. Perto. A um passo de mim. E avó, guardo comigo a certeza que nesta viagem que agora fazes, vais estar sempre de sentinela a zelar e olhar por mim, por aqueles que amo e que abraçaste em vida. Nesta vida. Na minha vida.
E sei, com a certeza de uma vida, que brilhas lá bem no alto, com aquela luz de estrela, e vais guiar-me no caminho que irei percorrer.

Acho que ainda não chorei tudo o que tinha de chorar por ti. O meu mundo, que andava perdido, desabou. E senti-me sem chão. Não consegui chorar tudo, avó. Às vezes tenho medo que rebente dentro de mim este choro contido. Ainda guardo este nó no peito por te ter perdido.

Protege-me. Eu sei que o vais fazer. E sei que vais espreitar sempre da janela e olhar por mim. Por nós. Toma conta de mim. De nós.
Um beijo de amor no teu coraçao onde quer que estejas.

Estou cansado de perder as pessoas que amo. As pessoas que amo. [,,]